Blog da Chames: Não sou uma girlboss

Eu já escrevi uma série de textos tentando apresentar o Perdidas Anônimas, mas nenhum deles me parecia certo. Percebi que eu não explicava muito bem as minhas intenções com o projeto e me perdia nas palavras, falando muito da minha própria jornada e emoções confusas, mas pouco das minhas ambições, que, sinceramente, não vão muito além de criar um espaço de apoio e diálogo. Mas a verdade é que talvez não tenha como eu introduzir a newsletter sem falar de mim. “A” perdida da vida ou Chames, de acordo com meu RG. Atendo pelos dois.

Vou cortar os detalhes enfadonhos sobre mim (que devem surgir nos próximos e-mails de qualquer maneira) e pular para um possível ponto de interesse: Tomar decisões em uma atualidade de infinitas possibilidades parece estar sugando as nossas energias. Para mim, por exemplo, cada vez que alguém me pergunta “mas quais são teus planos?”, uma fada morre. Embora eu abra um sorriso no rosto e corte o papo com um curto e grosso “não sei”, a minha vontade é de recitar todos os palavrões que eu conheço em ordem alfabética. Eu deveria, aliás, porque toda vez que eu digo que não sei quais são meus objetivos de vida, me respondem com um “mas quais são os teus hobbies ou interesses?” e aí outra fada morre. Porque, sim, eu cheguei em um ponto em que nem sei mais quais são as coisas que eu gosto (além de funk e Lana Del Rey).

A questão é que já é difícil ser um humano naturalmente mutável (ninguém é, todo mundo está), mas a coisa fica ainda mais desafiadora quando o mundo está mudando com a gente. O mundo dos nossos pais não existe mais. Fazer uma faculdade, encontrar um trabalho e desenvolver uma carreira dentro de uma empresa é o conto de fadas da próxima década. Lenda. Paralelamente, crescem o número de autônomos, blogueiras e girlbosses – whatever that means. As pessoas estão fazendo faculdade para profissões que não existem mais (pelo menos, não do modo como ainda ensinam…) enquanto profissões que não existiam há dois, cinco ou dez anos são a nossa nova realidade. Editor de redes sociais parece moderníssimo? Tente explicar qual é função de uma Head of Fashion do Instagram. Porque, sim, isso é um cargo – e um dos grandes (Eva Chen <3).

E, ok ok, é legal imaginar que podemos criar algo do zero, empreender e ser as nossas próprias chefes (está permitido revirar os olhos se você quiser também). Mas, na minha opinião, isso virou uma obsessão tão chata quanto escolher a faculdade que você quer fazer. O esquema atual é sofrer duas pressões: a primeira é fazer o vestibular, finalizar o curso e perceber que você está na merda. Depois disso, já tentando lidar com o caos de ser um adulto que mais parece um adolescente, ser também pressionado para fazer acontecer. Fazer acontecer pode significar muitas coisas e o conceito muda de pessoa para pessoa.

Mas com facilidade da internet e o alta do empreendedorismo, existe uma forte crença de que só fica parado quem quer – ou, pior, é medroso ou preguiçoso. E isso fica ainda mais presente para alguém que, como eu, não descobriu um caminho para trilhar. Porque quando você diz que não sabe que merda está fazendo com a vida, as pessoas pensam em caminhos mirabolantes para você. “Cria um blog”, “faz um podcast“ ou até “você não gosta de fotografia? Então, sei lá, abre uma galeria de arte!”.

Você riu ou achou exagerado demais, mas as pessoas não param de dar dicas que me parecem tão absurdas quanto. Meu Deus! Será que podemos, por favor, só curtir uma parada de boa, sem querer transformá-la em um negócio? Hoje em dia até ser um usuário assíduo da Netflix pode ser um trampo, a gente já sabe. Mas nem tudo precisa ser um negócio – muito menos a nossa vida. E é por esse motivo que eu estou cansada de ver métodos que tentam tratar nosso futuro como um business plan, como se fôssemos entidades inanimadas e desalmadas; que acham que nossa rotina e hábitos precisam ser produtivos como uma máquina de fábrica; que precisamos ser nossa melhor versão.

Então esse é o meu manifesto: não, eu não sou uma girlboss. De todas as coisas, posso dizer que sou apenas uma girl, sem boss(a). E sei que eu não estou sozinha. Precisamos estar atentas e unidas na nossa perdição. Precisamos ressignificar muitos conceitos que viraram queridinhos do mercado, como propósito, paixão, trabalho e, vejam só, até autocuidado! Não temos as respostas, mas podemos respirar e aceitar que, em algum âmbito, estamos perdidas. E tudo bem. Mais importante que o destino final é a caminhada (quer dizer, falam isso por aí e eu acho bonito).

RECOMEDAÇÕES

Para conferir com calma

1. Recentemente, descobri a newsletter da Aline Ramos, ex-redatora do Buzzfeed Brasil, e me alegrei em tê-la todas as segundas-feiras no meu inbox. No Descobertas da Semana, a jornalista compartilha as novidades que a tocou durante os últimos dias, de insights pessoais até um novo achado na Netflix. Gosto por que, por alguns instantes, posso sair da minha bolha de mulher-branca-culturalmente-americanizada e entrar em contato com algumas produções negras e brasileiras indicadas por ela. Além disso, admiro Aline por falar abertamente de temas sensíveis, como a depressão com a qual lida. E vocês já sabem como eu sou fã desse time que compartilha a vulnerabilidade na web, né?

2. Neste vídeo, intitulado “As pessoas estão fritando de tanto trabalhar”, Caio Braz apresenta as ideias de Byung-Chul Han no livro “No Enxame”. Para isso, ele faz uma pequena introdução de como a nossa sociedade se organizou ao longo dos tempos, chegando à atualidade, na qual, de acordo com o autor, somos comandados pelo capital, pelo mercado. O mercado seria como uma linha que costura a “regulamentação” do nosso lifestyle contemporâneo, ditado não por uma instituição, como a Igreja ou Estado no passado, mas por nós mesmos. Desta forma, somos nós que ditamos a violência que acontece no campo do trabalho (uma violência mais psíquica que física, diferentemente do que aconteceu na revolução industrial), estimulando, assim, uma série de padrões (alô, seja fitness e zen!) e a lógica do “seja melhor versão de você”. Insight interessante.

Para treinar o inglês

1. Li o livro “You’re Not Lost”, da Maxie McCoy, no ano passado e fiquei incrédula em como as palavras pareciam sair de mim. Este ano, fiz a leitura novamente e acho mesmo que posso considerá-lo a bíblia do Perdidas.

2. Existe uma ligação entre sermos uma sociedade ansiosa e a defesa de medidas extremas, como a construção do muro na fronteira México e EUA? Este artigo não só defende que sim, como também afirma que os americanos estão no meio de uma crise de pânico.

3. Essa dica dá para assistir em português, na verdade. “The Chilling Adventures of Sabrina”, da Netflix, é um respiro gostoso das séries adolescentes bobinhas. Com um elenco maravilhoso (Kiernan <3), a trama aborda assuntos ainda mais maravilhosos como feminismo, críticas válidas às religiões e à sociedade misógina e patriarcal, além de referências interessantes, como a de Lilith. Mas tudo de forma leve!

4. “We’re Not Really Strangers” é um jogo de cartas, mas principalmente um perfil inspirador no Instagram. Os criadores enfeitam ruas de cidades americanas com frases importantes e que conversam muito com o Perdidas, como “hi guys, my heart hurts” ou “my biggest dream is to calm down”. Vale o follow!

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