Como encontrar o nosso próprio caminho em uma atualidade de respostas prontas e desejos imediatos?


Thaís Fontinele, assim como eu, nasceu em São Luís e estudou no Jardim Crescimento. Por ser uma escola um tanto pequena, quase todos os alunos se conheciam e, por lá, eu e Thaís vivemos algumas poucas aventuras enquanto pré-adolescentes. Atualmente, acompanho a vida dela pelas redes sociais e me encanto ao ver o amor de Thaís pela profissão escolhida: a psicologia.

Graduada pela Universidade Federal do Maranhão, Thaís estuda há um tempo o tema do corpo na sociedade de consumo e, atualmente, como mestranda, disserta sobre “o corpo feminino como objeto de consumo e os modos de subjetivação na contemporaneidade”. Foda, né? Dessa forma, achei que seria interessante convidá-la para conversarmos sobre temas recorrentes entre nós e ela gentilmente aceitou o pedido. Olha só o resultado:

Hoje em dia, somos mais honestos sobre a idealização do futuro e sabemos que somos um tanto obcecados com resultados e soluções. Virou fofo falar na internet que aproveitar a jornada é mais importante que estar na linha de chegada. Mas como, de fato, podemos fazer esse “shift”? Por que é tão difícil se conectar com o presente?

Fazer esse “shift” é difícil porque buscamos encontrar respostas prontas. O que vivemos hoje nos mostra muito isso: as livrarias lotadas de livros de autoajuda como os mais vendidos, que nos dizem a todo momento como fazer para sermos melhores ou mais produtivos. As salas dos coaches lotadas de pessoas querendo encontrar soluções para os desafios, considerando que o outro saberá te apontar o melhor caminho para a tua própria jornada. A sociedade contemporânea capitalista é movida pelo espetáculo, as relações são mediadas pelas imagens. Incorporamos tanto isso a ponto de acharmos hoje que precisamos estar “prontos”, que o resultado é realmente mais importante do que como nos sentimos. Somos movidos pelo olhar do outro e muitas vezes desejamos alcançar algo não para nós mesmos, mas porque achamos que podemos ser valorizados (e queremos ser valorizados pelo outro) quando chegarmos “lá”. A psicanálise nos fala do desejo e nos aponta que o desejo está aí para ser desejado e isso não significa que todos os desejos são realizáveis. Precisamos aceitar que a falta nos constitui e sim!, isso dói de verdade, fere nosso narcisismo. Então, nós desejamos muitas coisas (ao mesmo tempo e agora) e sabemos que esses desejos nunca serão plenamente satisfeitos. Claro que dizer isso não serve para dizer que não devemos ir em busca daquilo que desejamos… pois se o desejo não pode ser satisfeito em totalidade, ele pode, sim, ser satisfeito parcialmente. Precisamos nos conhecer, aceitando nossas fragilidades e limitações, aceitando a dor e o sofrimento que são inerentes ao processo de autoconhecimento para nos libertarmos da ilusão de viver uma vida para agradar à platéia, mas que não nos preenche. Precisamos encontrar o caminho verdadeiro, para cada uma de nós, para nos satisfazermos parcialmente! O “shift” para viver no presente está em nos conectarmos com a nossa própria verdade. O sentido da vida é para cada um e temos a missão, cada um por si, de descobrir o próprio. Psicoterapias, meditação, ioga, práticas espirituais podem ser um bom caminho para a descoberta do próprio “eu” e a forma de garantir que o presente seja vivido com atenção. Assim, abre-se um espaço em que podemos viver momentos plenos de sentido, principalmente porque conseguimos estar mais abertos e com mais atenção ao que nos acontece.

Existem muito livros que ensinam maneiras estratégicas de “sermos tudo que queremos ser”. Existe essa nova onda de propagar nossa própria responsabilidade perante nossos sonhos. Esse papo de que “uma meta sem um plano é apenas um sonho”, sabe? Se por uma lado é bom entendermos que somos responsáveis por nós mesmas, é uma tanto preocupante a culpa que isso pode instaurar. E, nós mulheres, já carregamos muita culpa. Como você vê essa questão?

Com certeza essas falas prontas e respostas ofertadas de maneira rápida e coletiva são preocupantes. Na psicologia não postulamos que a meta e o objetivo final são os pontos mais importantes. A linha de chegada é importante, mas às vezes esse discurso de que você pode chegar onde você quiser e isso só depende de você pode desconsiderar uma série de outros fatores implicados nesse processo. A vida acontece no desconhecido, fora da zona de conforto, onde não estamos no controle. Acreditar que a meta será alcançada de qualquer jeito pode trazer um peso de uma responsabilidade enorme caso a frustração venha. E a frustração é um sentimento comum, não conheço ninguém vivo que nunca a tenha experimentado. O que precisamos fazer é entendermos qual o sentido da vida para nós no momento (sim, em cada momento isso pode mudar). Depois, precisamos construir um projeto de vida analisando o que gostaríamos de fazer, como gostaríamos de nos sentir. O projeto de vida não precisa estar amarrado com um lugar fixo e determinado… Isso facilita quando precisarmos lidar com algum percalço do caminho. Pois se colocamos toda a nossa força em um projeto pré-determinado e rigidamente estabelecido, podemos sentir que nos despersonalizamos ao perdê-lo (vai doer muito mais!). Mas se construímos nosso projeto baseado em idealizações de coisas que gostaríamos de estar fazendo a longo prazo, podemos encontrar formas alternativas de nos satisfazermos (parcialmente) mesmo se nosso plano inicial falhar. No caso das mulheres, é muito mas muito mais sofrido mesmo. A força que precisamos fazer para chegarmos onde desejamos é muito maior. Lidamos com estereótipos de todos os lados. Mas a revolução precisa começar por nós e precisamos realmente buscar redes de apoio e autocuidado (salve, Perdidas Anônimas) para lidar com todo o peso da culpa que a sociedade nos imputou e nos imputa por tantos e tantos anos. Nos libertemos de achar que o outro – qualquer um – pode palpitar e nos sugerir caminhos melhor do que nós mesmos podemos fazer. Precisamos descobrir que não são as respostas que nos salvam, são as perguntas. Que sejamos autores da nossa própria história, pois o sentir é do sentidor, aquele que sente.

Sobre isso, percebi que muitas meninas sentem que não são o suficiente. E isso me preocupa porque se meninas que tiveram acesso a uma boa educação se sentem incapazes, imagina mulheres em situação marginalizadas, né? Enfim, síndrome de impostora é real! Muitas meninas citaram que têm medo de sair de um trabalho onde estão infelizes porque acham que não vão achar mais nada – e não por um motivo mercadológico, mas porque acham que não são boas no que fazem. De onde podemos dizer que vem isso? Coletivamente, por que podemos dizer que as mulheres são tão inseguras de si? Como podemos torná-las mais confiantes?

Pensando por um viés histórico, pode-se entender a insegurança das mulheres sendo ocasionada por muitos anos de submissão e repressão. Por muitos e longos anos o papel feminino na sociedade esteve atrelado à funções pré-determinadas e rigidamente estabelecidas a partir de uma determinação puramente biologicista. Não havia espaço para que se dessem processos de subjetivação particulares, individuais. Nasceu-se mulher, assume-se um papel social previamente determinado. Sabemos que essas funções estabelecidas socialmente para as mulheres as remetiam a arranjos sociais desiguais e hierarquizados entre homens e mulheres. A psicanálise também nos fala sobre o processo de “castração” simbólica que orienta uma posição subjetiva muito particular às mulheres. A mulher reconhecendo não possuir o “falo”, deseja tornar-se o “falo”, deseja suprir a falta e se coloca em posição de objeto para o outro, o que gera inconscientemente uma sensação de “não-todo” para a mulher. Assim, temos um caminho para a compreensão de porque a mulher se sente tão insegura. Faz parte do nosso processo de subjetivação – que não precisa ser assim para sempre, ele pode ser ressignificando com análise e psicoterapia – e dos processos sócio-históricos de construção da realidade da nossa sociedade – que podemos reescrever, estudando, pesquisando, nos impondo, resistindo e abrindo novas possibilidades.

Li uma frase interessante recentemente, que a “opressão não funciona ao menos que parte dela seja internalizada”. Ou seja, recebemos mensagem que limitam nosso poder e compramos isso…

Compramos essa idéia porque é muito mais difícil lidar com o esforço de sair da posição subjetiva que já assumimos por tantos anos. Constituímos-nos de uma maneira e por mais sofrimento que essa forma de ser possa nos trazer, tem aquela historia de que nós “nos acostumamos com o quentinho da merda”. Sabe quanto tudo está indo mal e dando errado e reclamamos, reclamamos e não fazemos nada pra mudar? Sim, é isso. Acostumamos-nos a nos sentirmos exatamente dessa forma e aceitamos esse padrão, o repetimos mesmo que de forma inconsciente, pois mudar isso requer um esforço de se deparar com outras questões. Sair da posição que nos colocaram requer esforço e força. A opressão não vem só de fora, mas muitas vezes ela vem de dentro de nós. Só podemos nos libertar quando primeiro encontrarmos um caminho de libertação individual.

Além desse aspecto coletivo, rola também muita comparação. Já sentimos que não somos o suficiente (que devemos melhorar muitas coisas em nós mesmas antes de fazermos algo pela gente, antes de ir atrás de um sonho etc.), e além disso ainda fazemos comparações com outras pessoas. Com a internet, isso ficou mais fácil – porque só vemos a parte boa do que acontece com os outros. Como comunicadora, acho que precisamos criar maneiras de reverter isso! Que solução você enxerga ser possível como psicóloga?

Como psicóloga, preciso puxar sardinha pro meu lado. Acho que a melhor forma de se empoderar da sua própria existência, assumindo o controle da sua vida, é buscando um espaço de escuta e acolhimento para que se possa falar sobre suas questões e elaborar novas formas possíveis de ser, mesmo diante do sofrimento que esse processo remete. Considero que o autoconhecimento é o caminho mais saudável e tangível para lidar com o espetáculo das imagens, com o bombardeio de informações e modelos. Compreender o que te faz bem e orienta o teu projeto de vida em detrimento àquilo que só te gera desejos inalcançáveis e o conseqüente sentimento de frustração é uma saída e tanto. Restringir o ciclo de amizades virtuais para seguir somente quem te acrescenta foi um movimento que me ajudou muito a não desejar uma vida que não serviria para mim, mas que encantada pelas imagens propagadas incessantemente me faziam acreditar que sim. Esse é um caminho e tanto para o amor-próprio! A gente precisa aceitar nossa vulnerabilidade e seguir apesar dela.

Para finalizar, ainda sobre comparação, vejo que lutamos muito por diversidade – queremos ambientes múltiplos – mas, na maioria das vezes, não aceitamos nossa própria diferença perante aos outros. Achamos que temos que ser “mais como tal pessoa”, “mais como todo mundo”.

Como já falei demais, vou deixar para essa pergunta uma passagem do Foucault sobre a “estética da existência” que pode contribuir muito quando pensamos sobre fazermos da nossa vida uma obra de arte, única, valiosa e independente das outras:

“O que me surpreende é o fato de que, em nossa sociedade, a arte tenha se transformado em algo relativo apenas à objetos e não à indivíduos ou à vida; que a arte seja algo especializado ou feito por especialistas que são artistas. Entretanto, não poderia a vida de todos se transformar numa obra de arte? Por que deveria uma lâmpada ou uma casa ser um objeto de arte, e não a nossa vida?”.

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